domingo, 27 de setembro de 2009

Plateia de seu próprio monólogo


Era lágrima. Ele queria ter nascido palco. Ele não queria ter nascido plateia. Mas assim ele nasceu. E tinha de carregar o fardo de ser o que ele não queria ser para satisfazer a um mundo que não a ele pertencia. Era lágrima. E a carne que o vestia era a mesma que o vinha despindo e o tornando servo de si mesmo. Tinha vergonha de ter nascido ele. Aquele rosto frio e feio e o corpo disforme não poderiam ser seu. Ou poderiam? Céus, por que sofria? Por que sofria calado? Por que não se manifestava ao mundo de água e terra, não saía e libertava-se deixando a alma voar e esvair-se? Eu não sei. E quando encontrar-me com ele, saberei dizer apenas isto: É lágrima.
A morte veio para ele como um toque de liberdade, de arrebatamento precoce - ou tardio? Morreu na avenida em horário de pico por entre vários outros cadáveres que, seguros em suas prisões individuais, dirigiam para suas casas. Talvez a morte o tenha levado para sua verdadeira casa. Sei lá...

domingo, 20 de setembro de 2009

Sobre o amargo do amor

Talvez fosse apenas o cinza dos dias ou o desequilíbrio da razão, mas quis por assim mesmo ver um amanhecer. Amanhecer, que era o perfeito oposto do entardecer que propusera outrora. Talvez fosse loucura sua ou uma simples ilusão de ótica, tudo parecia estar em par. Os cachorros roubavam ossos, as crianças corriam, os jovens namoravam. Apenas as árvores, coadjuvantes daquele filme açucarado estavam sozinhas.

Eram árvores grandes, de folhagens fartas e repletas de flores. Aparentavam estar firmadas naquele parque há décadas. Talvez fossem apenas testemunhas de amores, dores públicos - e de sua sozinhez, agora. Eram imponentes, como se dissessem que podiam sim, serem tão bonitas, mesmo que sem pares.

E enquanto todos os pares do mundo uniam-se em um coro agudo e insuportável ao coração só, ele pensou no Sol, que conhecia de perto a verdadeira solidão. Sofrido o gigante alaranjado, que tinha a distância e a natureza como inimigas.

Engoliu com pesar o suco de fruta, tão doce que acabava azeda. As árvores, sozinhas, farfalham ao sabor do vento, rindo do rapaz que dizia que jamais conheceria dos dissabores de Eros. Mal sabia ele que já estava mergulhado no amargo do amor.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Treze Segundos

Avisou sua casa. Estava diferente, era-lhe familiar, mas diferente. O amarelo desbotado da fachada continuava pouco brilhoso, a relva pouco verde e a terra que consumiam os meros dois metros entre o portão e a porta de entrada continuavam no mesmo lugar. Mas tudo estava diferente. Tudo igual, mas diferente. Era como se o sol, antes brilhoso, ficasse mais amargo, mais desesperançoso, mais alaranjado. O sol alaranjado que ardia sobre sua casa, lhe incomodara, mas ele não fez nada a respeito. Deixou apenas as nuvens o cobrirem. Seu erro sempre foi esse. Deixar as nuvens do céu cobrirem o alaranjar do sol sobre o seu mundo. Podia até ser forte, mas não tinha a força necessária para devolver o brilho de verão ao Sol, seu legítimo dono. Roubara para si. E o estragara. É mágoa. E traição. Não aguentou o peso de seu coração cheio de sangue e de dúvida, e sentou-se na calçada em frente a sua casa. Jogou a moto no chão. Que importância tinha? É mágoa. Colocou os braços sobre os joelhos e olhou para o chão. Viu apenas a sujeira do concreto. Mas é melhor pensar que ele estava observando a sujeira de si mesmo. É mais viável. Treze segundos mais tarde, sem nenhuma útil e fidedigna reflexão passando pela cabeça de Joubert, apareceu sua irmã com seus olhos masoquistas sangrando por dentro e com um vestido cor-de-nada que combinava com o dia de ambos os irmãos. Joubert não olhou para trás. Sentiu a presença da menina pela atmosfera que os rondava silenciosamente. Samia ajoelhou-se por trás de seu irmão e abraçou-o pelas costas, envolvendo seus braços no pescoço de Joubert. Foi um abraço leve, mas cheio de espírito. Cairam duas lágrimas do rosto de Joub. Por algum motivo, houve o mesmo com a menina. Passaram bons minutos ali, naquela mesma posição, abraçados com o silêncio. Vez ou outra um barulho de carro passando na rua ou de um avião cruzando os ares invadia a paz dos dois. Mas o barulho era efêmero, não tinha importância. Estavam concentrados no futuro, no medo do amanhã. O desalento do sol alaranjado não era culpa de ninguém e era culpa de todo o mundo. E ninguém sabia disso. Infelizmente.

Trecho de O Sol Alaranjado,
livro de João Bertonie.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Um Conto Molhado de Sangue

A objetividade do noivo a assustava; queria tudo para ontem, almejava pôr as turbinas na frente do avião. A noiva teimava: "Só depois do casamento, já disse". Todos comentavam a saliência daquele noivo, por mais que aquilo, em pleno século XXI, fosse comum. Ora, quem mandou-a noivar-se com um volúvel daqueles? O pai, rigoroso aos costumes evangélicos, advertira: "Ele é do mundo, minha filha, ele é um mundano!", mas de nada adiantou. Ela não resistira àqueles olhos oblíquos, àquela voz com o sedutivo sotaque carioca, àqueles versos declamados em forma de atitudes. Mas as atitudes progrediram (ou regrediram) e agora estavam cheias das secundárias intenções. Euforia era o sinônimo daquela noiva. Fizeram de tudo para amenizar o constrangimento da pobre. Nem adiantar a data da boda dera certo: as insinuações do noivo foram tamanhas que ela teve de ceder aos seus caprichos; dera a si àquele que um dia seria seu esposo.

Estavam todos afoitos com o casório; faltavam apenas exatos trinta minutos para que as duas almas enfim tornassem-se um só espírito. O barulho do vai-e-vem de pernas naqueles corredores ("pra quê tanta perna, meu Deus?") foi de repente cessado. Súbito, um grito de dor preencheu o vazio daquele apartamento. Todos correram para o quarto da noivinha; era de lá que veio o estrondo de voz humana. Tirara a noiva seus olhos com o pente fino que não usava mais devido aos caracois de seus cabelos. Estava vestida de noiva, claro, e em seu farto colo estava escrito de batom: "Não sou pura, mas quero ser enterrada assim!".


sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Circo...

Súbito, arrepiou-se. Sentiu no corpo uma leveza estranha, como se voltasse a infância, como se estivesse num circo. Sim, num circo. Lembrara do dia que a infância ainda existia, quando vivia distante das máscaras de oxigênio que eram de uso obrigatório nas ruas da cidade, da neblina que invadia as casas e corroía os pulmões, dos constantes assaltos, da realidade da vida. Lembrara do circo. E sorrira. Porque o circo, na época em que a humanidade ainda tinha suas chances, era um parêntesis do mundo, uma tenda colorida onde o passado e o presente se encontravam e provocavam furiosas batidas de coração seguidas de vários risos e sorrisos abertos. Lembrara dos malabarismos extraordinários e das contorcionistas que, com toda a certeza de uma criança, não tinham ossos. Meu Deus, e o que eram mulheres que carregavam em seus ombros mais de duas famílias de palhaços? Ah, os palhaços. As piadas silenciosas, as maquiagens borradas com as lágrimas que saíam involuntariamente, as ingênuas e escandalosas brincadeiras. E os engolidores de fogo? Como seria a sensação que tinha quando o fogo adentrava seu corpo e depois saía furiosamente como uma fênix liberta? E, por fim, o espetáculo acaba numa escuridão toda escura, vinda depois dos aplausos de aprovação. E vai-se o circo que não volta mais.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Resignação

A senhorinha não saía da casa. O rapaz começava a inquietar-se. Diacho de demora! Se não precisasse tanto deste dinheiro, a mandaria pro inferno e sairia pra farrear. Ah, imaginação humana! Falar de como sua vida poderia ser o fazia pensar em outras vidas de outros alguéns, realidades tão distantes da sua.

Levantou-se do banco do carro, pois ouvira barulho de passos. A senhorinha vinha tão diferente. Aqueles anos de internato fizeram-lhe muito bem, pensou timidamente. Vinha com as bochechas coradas, o sorriso de anjo. Ela era um anjo. E ele, apenas um medíocre empregado. Baixou a cabeça.

- Fez boa viagem, senhora?
- Fiz sim, obrigado por perguntar. O moço é o filho da sinhá Nastácia?

Congelou por dois segundos. Ela lembrara dele, o garoto que correra atrás da senhora-menina - e longe de ter toda aquela educação, ressaltou mentalmente -, dos pés elameados por estar sempre na baia, cuidando dos animais. Não que fossem muitos os momentos seus; vissem-na em sua companhia e era um peão correr, contar pro patrão e este dizer ao seu pai, tão perdido em sua subordinação, que cuidasse daquele preto retinto do seu filho, se não quisesse perdê-lo. O pai obedecia, temeroso do futuro.

- Sou sim.
- Faz tanto tempo que não venho da capital que até estranho este ar leve de se respirar. Nem lembrava da falta que sinto cada vez que disto desta cidadezinha esquecida do mundo.

Ainda estranhava a ausência do ruído dos carros, doas passantes apressados e alheios. Largar a capital, tão cosmopolita, para voltar para "aquele canto dos esquecidos", como diria sua mãe, era um desaforo. Porém, assim quis. Vivera durante muito tempo sob as ordens dos pais. Queria viver apenas sobre o comando de si.

- Seus pais não estão nada satisfeitos de terem a senhora aqui.
- Sei disso. Não precisa me chamar de senhorinha. Pelo menos não me chamava assim quando gritava "sua choramingas!"

Ele corou. Não esperava que ela, moça feita, lembrasse dos desvarios infantis. Acreditava que agora, estudada, só fosse comentar da capital, das artes. Da política, não - seu pai iria à loucura se ela desatasse a comentar de como fechava-se o circo na capital.

Ele ficara mais gentil agora crescido, pensava ela em seu íntimo. Os tempos de baia ficaram em algum passado esquecido. As feições de moleque também estavam mais sutis e ela dizia, somente para si, que ele ficara mais bonito do que qualquer rapaz que vira nestes anos. Dissesse isso para qualquer um e ouviria um sermão de horas. Como ela, filha de um dos cafeicultores mais poderosos da região poderia querer qualquer coisa com aquele preto?

Entraram no carro e a conversa cessou. Ele olhava para a estrada esbarrancada, cheia de pedregulhos. Ele estava em pedregulhos. Não imaginava que vê-la novamente o deixaria assim.

Ela usava os pulos do carro como desculpa para seu tamanho desconforto. Admirava-o, quando tinha certeza que não era notada; e se fosse, o que diria? A sociedade não estava pronta para ele, nem para um nós, que se existisse, causaria tamanho estranhamento. O pai a deserdaria sem mais pensar; a mãe faria novenas para que a sua pequena recobrasse o juízo. Ele iria embora com o peso da culpa nas costas.

O carro parou, arrancando-a de sua divagação. A casa, grande e plana, lembrou sua vida. O comando de si era um desejo inatingível. A sociedade era rude, a realidade, imutável. Sua vida era uma linha reta, a qual não deveria sair um milímetro do planejado. Este era o mundo. Esta era ela.