sábado, 10 de outubro de 2009

Mentalmente.

Ele realmente acreditava que aquela seria a última vez. Viera ensaiando mentalmente as palavras que há semanas formulou. Desculpa, mas me explicar não é do meu código de conduta. E eu só quero que o nosso terminar não seja um desgostar. Péssimo. Só faltou o não é você, sou eu. Ele nunca fora bom, tanto com términos quanto com inícios. Com ela, tudo havia sido diferente. Ele não a procurou. Ele não a quis. Ela correu pro ataque.

Não que eu não goste dela, tentava replicar, ainda mentalmente. É questão de ego. O valor maior está na própria conquista. Engoliu seco, para continuar. E, neste caso, o conquistado fui eu.

De certo, não formavam um casal comum. Amigos lhe perguntavam como ele conseguira uma namorada tão geniosa. Como se eu soubesse!, pensava ele. Era tudo culpa do acaso. A festa, a bebida, a garota. Ele estava no lugar errado, na hora errada. Talvez fosse apenas uma coincidência infeliz.

Olha, lá esta ela. Bonita, do seu jeito. Birrenta, como nascera. Ela, toda. Sua?

- Você demorou. Droga, eu já disse que não gosto de esperar.

E ele não soube explicar nem como, nem o porquê. Aquela atração-repelida, olhar de fúria recolhida, o sorriso entrecortado pela bronca... Tão familiar. Tão ela. Tão sua.

Todos aqueles pensamentos se desfizeram em nuvens. Peculiarmente, ele a amava. Mesmo que não mentalmente.

sábado, 3 de outubro de 2009

O (des)amor nos tempos da gripe suína

_Me deixa ser o dono do teu coração.
_Ele já tem dono!
_Me deixa ser o gerente, então.

Foi numa festa de aniversário em que os dois se conheceram. Vi tudo. Eu estava lá vagando por entre os corredores daquele tão grande apartamento em Itapuã. A música era de carnaval antigo, desses que só se vê na televisão. Ah, só para constar, eu odeio televisão. Eu nunca apareço bem nela. Acho que ela me engorda. Voltemos ao casal:

_Olha que a gerência é cargo de grande responsabilidade!
_E olha que vê-se em mim a representação humana da confiança.
_Quero só ver.


Despiram-se dois meses mais tarde por menos de meia hora. Despiram-se e atacaram-se no estacionamento da universidade. Que vergonha! Eu estava lá acompanhando tudo, com cautela para não tocar nos dois, numa distância segura. Ele não queria porque ele era a representação humana da paciência em Salvador. Ele só queria ser gerente do coração. Eu bem que o avisei. Olha, não estranha, mas essa menina é cheia de manha. Ele pareceu ignorar-me. Adiantemos e vamos para alguns meses mais tarde.


_Olha...
_Estou olhando.
_Não é olha de olhar. É olha de escutar.
_Hã?
_Escuta.
_Estou escutando.
_Bom que esteja.
_Fala logo que eu tenho aula de Metodologia Científica.
_Estou grávida.
Ele deu o silêncio como resposta e olhou para o chão. Havia duas formigas carregando um pedaço verde de folha. As duas começaram a disputar pela insignificante folha. Ela partiu-se em duas e cada uma ficou com uma parte. O silêncio se quebrou com sua voz áspera arranhando-lhe a garganta e nadando na atmosfera:
_Tira.
A lágrima ameaçou cair do rosto caboclo da gestante. Ele repetiu:
_Tira.
Ela tentou dar-lhe um tapa. Mas o sangue não conseguiu chegar aos braços. Ele repetiu:
_Tira.
Ela não tirou. E foi aí que eu entrei.


Alguns dias depois, na maca do hospital, ela estava deitada e desacordada. O filho morto na barriga, assassinado por mim, o vilão da história segundo a televisão. Ela não tinha lá muita respiração, na verdade, estava morta. Só me lembro que também vi o genitor daquela tão nati-morta criança naquele mesmo hospital. Mas ele sobreviveu. E, uma semana depois, estava naquele mesmo apartamento em que os dois se conheceram, numa outra festa, com uma outra garota. Ah, eu odeio televisão, só para constar.