domingo, 29 de agosto de 2010

Filme Preferido


- Desculpa, eu sei que é tarde.
- Não, não se desculpa. Gosto dos teus telefonemas, eles me amenizam.
- O quê?
- Nada, pode falar.
- Não tenho nada para falar. Só queria te ouvir a voz, só queria alguém para me ouvir a voz, entende?
- Entendo.
- Aposto que não entende.
- Entendo, entendo sim. Como acha que...
- Qual é teu filme preferido?
- O quê?
- Perguntei qual é teu filme preferido.
- Mas o que isso tem a ver com o que a gente estava falando?
- Nada, responde logo.
- Hm, acho que...
- Eu acho que você nem filme preferido tem.
- Claro que tenho. Todo mundo tem.
- Você é diferente de todo mundo.
- Hã?
- Eu disse que você é diferente de todo mundo.
- O que quer dizer com isso?
- Nada.
- Você quer dizer algo com isso, sim. Eu sinto.
- Não quero dizer nada com isso. Só quis dizer o que eu disse. Larga de ser bobo.
- Você é muito estranha, diz frases soltas.
- Todas as frases do mundo são soltas.
- O quê?
- Não seriam frases do mundo se não fossem soltas.
- Pois eu acho que você anda muito estranha.
- Pois eu acho que você ainda não respondeu a minha pergunta.
- Que pergunta?
- Já esqueceu?
- Ah, a do filme preferido.
- Sim, qual é?
- Acho que é...
- Você acha? A ideia de filme preferido seu é uma suposição?
- O quê?
- Você não tem um filme preferido, sabia desde o começo. Se apoia por meio de argumentos idiotas para definir suas preferências.
- O que você está falando?
- É seu filme preferido, seu objeto cinematográfico de maior amor. Não é possível que você se esquive diante de uma pergunta tão boba. Não é possível que você não saiba respondê-la. Não é possível que você apenas ache que seu filme preferido é seu filme preferido.
- Deixa de ser neurótica.
- Não me chama de neurótica.
- Isso é um telefonema ou uma sessão de análise?
- Cala a boca e pensa que em vez de eu ter perguntado qual teu filme preferido, eu tivesse perguntado, sei lá, qual é tua pessoa preferida. Você diria "ah, acho que é minha mãe"?
- Não.
- Diria "é minha mãe", não é? Assim, firme, com certeza.
- Diria que é você.
- Oi?
- Nada. Posso responder a pergunta?
- Que pergunta?
- A do filme preferido.
- Achei que você tivesse desistido de responder.
- Eu não desisto, eu respondo.
- Então responde.
- Meu filme preferido é...
- Meu Deus, já são três da manhã.
- Deixa eu responder. Me pertubou tanto para que eu respondesse, agora deixa eu responder.
- Adoraria saber teu filme preferido, mas já são três da manhã no meu relógio.
- Entendo.
- Sério. E amanhã preciso acordar cedo. Beijo, tchau.
- Por essas e outras que você não merece...
- O quê? Não mereço o quê?
- Saber qual é meu filme preferido.

sábado, 31 de julho de 2010

Eu Te Amo

Contos Eróticos: Eu Te Amo
  Ficou ali por cima dos lençóis e edredons manchados de batom e violência, a contemplar o corpo nu daquele estrangeiro, o sapato dela a pisar no sapato dele, cigarro jogado ao chão. Ela escorria os dedos no pescoço deitado, pressionando as unhas longas, as mãos descendo, arranhando-lhe o peito branco. Ele dormia o sono dos saciados, quieto como pedra, leve como pena. Ela já ia saindo da cama, os seus pés a pisar nas pernas dele, mas no rádio ao lado tocou Eu Te Amo e ela ficou, só para ouvir e nada mais. Cantou baixinho junto com o som do rádio, fazendo paradas rápidas para uma ou outra dose da tequila que dormira por cima do criado-mudo. Abajur a emitir luz fraca e tosca inutilmente, uma vez que o sol já chegara e seus raios, ainda que preguiçosos, percorriam pelo quarto pequeno. Ela, com a mão a acariciar o corpo quente do estrangeiro, lembrou-se de outrora, da madrugada, quando tudo perdeu sua forma e encontrou-se por debaixo das ranhuras da noite eterna. E os lábios esboçaram um sorriso desses de saudade que não se vê em cinema ou televisão. Eu Te Amo acabou e ela pôs os pés para fora da cama. Eles, os pés, tocaram o chão e queimaram-se com o cigarro. Ela não ligou, pôs as mãos na face harmônica dele e aproximou-se dos lábios parados, como se para se despedir. Mas os lábios se mexeram: "Fica", disseram eles.
  Deus, por quê? "Olha", tinha dito ela no dia anterior, "nada é amor; vodka é uma coisa, guaraná é outra coisa, e amor não é nenhuma delas". Ele não poderia dizer fica, ninguém tem o direito de dizer fica. Porque as noites, mesmo sendo eternas, passam - e o que passa não volta nem fica, pois agride, inflama, dói. Ela chorando, não pelos olhos, mas por dentro, na parte da alma, não na parte seca como sol do norte e fria como copa de bordeaux. Então, ela resolve virar-se, fingir que ele não está lá, com seus lábios trêmulos, face límpida e corpo de mochileiro. Pôs a liga e abotoou o sutiã. Fica, tinha dito ele. Não podia, não devia, não era certo - mas não era errado. Ela era ela, a vagar pelas noites, a descobrir novos mundos. Lábios tremulos, face límpida e o corpo de um estrangeiro a amarraria. Céus, por que pensava? Por que sequer cogitara a ideia de ficar? "É suicídio", pensou, "matarei a mim mesma para dar lugar a uma outra".
  Ela resolveu deixar que uma lágrima saísse-lhe dos olhos, caindo da face, chegando no corpo do estrangeiro. "Não chora", falou o homem; "Fica". Ela aborreceu: lhe deu um beijo violento, desses que mordem o lábio como um cão faria, enfiou-se num vestido preto e puxou a maçaneta que os separava do resto do mundo.
  "Não", disse ela pouco antes de adentrar no exterior do quarto. Tirou com força a última lágrima do olho castanho e saiu correndo, descalça e tonta, rumo a si.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Sofia


Sofia sofria. Sofia sofria por não sofrer, por viver a vida escrita. Sofia tomava Domecq da adega nobre da cidade, quando queria tomar vinho barato em motel de beira de estrada enquanto bailava e gargalhava ao som de Amy Winehouse na vitrolinha. Sofia usava Louis Vuitton, quando queria usar jeans rasgado comprado com pressa na estação onde pegaria o trem que rumava o reveillon de Copacabana. Sofia escrevia poesia, quando queria escrever diário algum que valha a pena.
Mas, apesar disso e apesar daquilo, Sofia sorria.
O telefone tocou. Era ninguém - só um moço. Não um qualquer, mas um que almejava o pequeno coração da menina Sofia. Ela ignorou - deixou o telefonema morrer-se. De correntes para prendê-la bastava a da sua vida escrita.
 Sofia deitou e olhou o teto. Era madeira, jacarandá da Amazônia, talvez. Queria olhar para outro teto - o do céu estrelado. Fechou os olhos e os abriu. E deparou-se com um céu pontilhado. Ironia da imaginação. De repente, percebeu que algo a incomodava, espetando-a levemente, e um estranho cheiro de natureza atingiu-lhe o nariz. Surpresa, Sofia percebeu que não mais em seu apartamento estava. Atordoada, correu ao encontro das luzes dos carros que cortavam a noite. E percebeu que não aquilo era ironia da imaginação. Podia sentir que era realidade - realidade que a tocava e a afetava. Viu uma grande placa verde que com letras brancas dizia: "Bienvenido a Buenos Aires". Olhou confusa para os lados, o vento e os carros passando, um pequeno jardim ao fundo.
   - Está fazendo o quê, maluca? - perguntou uma garota ruiva com as mãos nos ombros de Sofia.
Pálida, olhou para as próprias mãos. Numa delas, uma garrafa meio cheia ou meio vazia de um vinho qualquer, desses que vendem em padaria. O rosto pasmo deu lugar a um sorriso há muito adiado. Não entendia nada, mas estava como sempre quis estar: livre.

sábado, 13 de março de 2010

Ying Yang

Ele não dispensava a cerveja de sexta-feira. Ela era movida a café.

Ele amava os filmes trash-pow-bang. Ela só ia ao cinema para ver algo cult.

Ele sonhava em ter cinco filhos e ensiná-los a atirar de bodoque, jogar futebol e paquerar as garotinhas. Ela queria um filho único - pra ela, pro mundo.

Ele esquecia datas e aniversários. Ela fingia que não lembrava, mas tinha suas sobrancelhas arqueadas para qualquer ah em tom sonso.

Eles brigavam, tanto quanto um homem e uma mulher podem brigar. Ele dizia que seu maior defeito era amá-la. Ela dizia que o amava com todos seus defeitos.

Ninguém acreditava neles. Nem eles mesmos, se isso servisse de consolo. Opostos se distraem, dispostos se atrem - é o que diziam, os abutres de plantão e o Teatro Mágico.

Porém, como cada relógio - numa maquinaria perfeita - tinha suas engrenagens, o amor deles era essa bomba-relógio. Perfeito perigo, veneno doce. À noite, debaixo das cobertas, ela dizia que não entendia como eles podiam se amar. Pela manhã, ele dizia que não havia como não se amarem.

E nesses opostos, que muitas vezes se distraiam com desigualdades, estava o encaixe perfeito de um eles, sem caber de imaginar. Ele nem desconfiava que tinha um pedaço dela. Ela sorria ao ver que ele estaria sempre consigo.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Butterflies

Silêncio ensurdecedor, mesmo com Gal na vitrolinha. Ambos calados, a chuva fina tocando o chão. Viviam tão dispersos, olhavam para o lado demais... Enganaram-se, não por mal, na contramão. Tinham a certeza de que alguém destruiria seu jardim. Mas passaram-se 3 anos e o castelo que com pedras da serra construiram ainda estava (quase) intacto. 3 anos, meu Deus, uma eternidade! E, como num balé mau ensaiado, separaram-se. Como? Só afastaram-se. Puro e simplesmente, afastaram-se. "Teu castelo só me prendeu, viu?".
Conheceram-se aonde, afinal? No Rio de Janeiro. Verão, fevereiro ardente, noites ao funk. Viram-se num desses batidões. Beijaram-se entre uma ou outra cerveja. "Você ainda vai me amar amanhã ao meio-dia?". Na manhã seguinte, num albergue barato em Ipanema, ela amanheceu vomitando os horrores. Exagerou no álcool, todos sabiam. Ele estava lá, ajudando-a. Foi aí que uniram-se - e uniram-se mais ainda quando ela passou mal pela segunda vez. Quando visitaram a bateria da Mangueira, já estavam completamente apaixonados.
E agora estavam lá, tentando arrumar desculpas para separarem-se. 
"I wanna be away from here, quando essa bomba explodir..."
Ela não suportou - desatou a chorar e correu de encontro a porta vermelha daquele pequeno apartamento de Blumenau. Mas, antes que ela chegasse onde queria, ele a segurou pelo braço:


- Dê-me uma chance e eu tornarei o mundo mais belo novamente.

De repente, o mundo ficou mais belo novamente.
"Butterfly, baby, well you've got it all".

domingo, 31 de janeiro de 2010

Mudo


Era um menino, destes que só nos enganam no tamanho. Pouca idade, cigarro de canto de boca,
baba por fazer. Olhos perdidos.

Há tempos era observado, com curiosidade, por toda a sala. Logo ele, iniciador das brincadeiras, riso constante, agora portador daquela angústia em forma de silêncio. Seu olhar era pólo igual, repelia a preocupação, desdenhava da própria condição.

Ela estava ao seu lado, como de costume. A maledicência corria solta, à parte dos dois. Como se todas aquelas línguas entendessem o fim da carne e o começo da alma. Há amores que são feitos mãos; outros, puramente de coração.

Ele tentava manter a feição dura, cavaleiro armado para uma guerra. Sem saber o que enfrentaria. Sem ter uma certeza de vida, ou morte. Ela sentia na sua dor o lamento de quem sofre e grita, sem voz. A dor dela, a impotência de estar longe, mesmo estando perto.

O rosto, até então impassível, contraiu-se em tristeza. As pernas correram, sem direção, só sabendo que precisavam chegar. Num rompante, ela já estava em seu encalço. Viu uma lágrima indecisa, em um cai-não-cai sem término. A lágrima era tão dura quanto uma lança, empunhada por este cavaleiro reticente. Talvez o cai-não-cai de fora fosse o reflexo de dentro, onde ruía lentamente um esqueleto de construção.

Os dois estavam arfantes.
- Você não deveria ter vindo aqui.
- Não é vergonha nenhuma ter alguém com quem andar junto. Ainda que mudos, os dois.

A caminhada seria longa. Eram jovens. As pernas estavam descansadas, e o juízo não era lá muito. Mas era suficiente para fazer aqueles olhos tristes sorrirem.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

In the rain

Desde as três da tarde, o céu fechara; as nuvens, antes esbranquiçadas, fecharam-se num cinza furioso. Mais furiosa estava ela, que viajava pra casa enquanto os outros apenas se deslocavam para seus respectivos bairros. Péssimo dia para esquecer o guarda-chuva. A vida de outros parecia uma sequência lógica diante da sua, sem razão ou proporção. Droga, já estava misturando matemática a devaneios! Talvez seus amigos estivessem certos, não deveria estudar tanto.

Correu o mais rápido que as pequeninas pernas puderam acelerar, na hora. Ah, mas tinha aquela história que dizia que correr na chuva era pior. Andaria então, que jeito? Queria ter um guarda-chuva nem que fosse apenas para rodá-lo na praça vazia, num singingintherain que lhe fizesse esquecer, ao menos, o trânsito, o ponto lotado, a vida, aquela silhueta esguia adiante...

Silhueta esguia?

Não percebera aquele talo de couve-flor caminhando mais à frente. Era ele, de certo; onde mais encontraria alguém com um cabelo tão inacreditavelmente - e irremediavelmente - desarrumado? Tentativas de penteá-lo eram vãs, já que o cabelo era tão anarquista quanto seu dono: sem leis e correntes.

Ele tinha um guarda-chuva. Boa desculpa. Boa nada. Qualquer frase que pensasse terminava nos dois debaixo daquele guarda-chuva. Ah! Atiradagem de primeira e desculpa de última.

As pernas estacionaram, de supetão. A silhueta, lá na frente, agora voltava o caminho.

- Menina, olha teu estado! Vai ficar gripada.

Sorriso involuntário, fantasiado de vergonha pela bronca inesperada. Mal podia ver através dos seus óculos bombardeados dos pingos insistentes. Sorriso do outro lado. Pelamor, não faz aquelas covinhas aparecerem, vai ser meu fim.

- Eu esqueci o guarda-chuva, e acho que São Pedro não vai terminar o trabalho tão cedo.

- Vê se me fala, da próxima vez. Não gosto de ver você, com esse seu tamanho, andando molhada por aí. Agora, fica aqui. Se não sou eu pra cuidar de você...

Recomeçaram a andar. Tudo bem, ainda não cantaria na chuva do jeito que imaginara. Mas
aquele walking-in-the-rain estava de bom tamanho, por hora. A chuva não pararia mesmo... Que continuassem eles, então.