quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

In the rain

Desde as três da tarde, o céu fechara; as nuvens, antes esbranquiçadas, fecharam-se num cinza furioso. Mais furiosa estava ela, que viajava pra casa enquanto os outros apenas se deslocavam para seus respectivos bairros. Péssimo dia para esquecer o guarda-chuva. A vida de outros parecia uma sequência lógica diante da sua, sem razão ou proporção. Droga, já estava misturando matemática a devaneios! Talvez seus amigos estivessem certos, não deveria estudar tanto.

Correu o mais rápido que as pequeninas pernas puderam acelerar, na hora. Ah, mas tinha aquela história que dizia que correr na chuva era pior. Andaria então, que jeito? Queria ter um guarda-chuva nem que fosse apenas para rodá-lo na praça vazia, num singingintherain que lhe fizesse esquecer, ao menos, o trânsito, o ponto lotado, a vida, aquela silhueta esguia adiante...

Silhueta esguia?

Não percebera aquele talo de couve-flor caminhando mais à frente. Era ele, de certo; onde mais encontraria alguém com um cabelo tão inacreditavelmente - e irremediavelmente - desarrumado? Tentativas de penteá-lo eram vãs, já que o cabelo era tão anarquista quanto seu dono: sem leis e correntes.

Ele tinha um guarda-chuva. Boa desculpa. Boa nada. Qualquer frase que pensasse terminava nos dois debaixo daquele guarda-chuva. Ah! Atiradagem de primeira e desculpa de última.

As pernas estacionaram, de supetão. A silhueta, lá na frente, agora voltava o caminho.

- Menina, olha teu estado! Vai ficar gripada.

Sorriso involuntário, fantasiado de vergonha pela bronca inesperada. Mal podia ver através dos seus óculos bombardeados dos pingos insistentes. Sorriso do outro lado. Pelamor, não faz aquelas covinhas aparecerem, vai ser meu fim.

- Eu esqueci o guarda-chuva, e acho que São Pedro não vai terminar o trabalho tão cedo.

- Vê se me fala, da próxima vez. Não gosto de ver você, com esse seu tamanho, andando molhada por aí. Agora, fica aqui. Se não sou eu pra cuidar de você...

Recomeçaram a andar. Tudo bem, ainda não cantaria na chuva do jeito que imaginara. Mas
aquele walking-in-the-rain estava de bom tamanho, por hora. A chuva não pararia mesmo... Que continuassem eles, então.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

May Scrap e Johnny Pepper




E num requebrado, tornou-se de May Scrap seu eterno namorado. Eterno sim. E em seu quadrado, pôs-se a suspirar por aquela dama de cetim.
Ela alternava entre Elvis, entre Maysa, e à la Carmem requebrava. Sangue fervia. Ele a almejava, aplaudindo ao final de toda louca melodia.
Ao findar das canções, o espaço esvaziou-se de quase todos corações. Sobraram dois. E sem uma ou duas razões, May aproximou-se dele três segundos depois.
E o music bar foi insuficiente para tanto sangue a pulsar. Tudo tão sem defeito. De ardor encheu-se o ar. Queria-o mais que tudo, queria-o de todo jeito.

Eis que então, beijaram-se de súbito, rangendo os lábios de paixão. Foi intenso, May afagou-se com um lenço, num minuto imenso.

‘Como chamas?’ ‘Chamo-me Johnny Pepper, que há muito tanto amas.’ Clarão forte de luz. ‘É o dono de tantas famas?’ Ele ignorou com um beijo ao som do blues.
Como toda artista, tinha May um camarim na periferia de sua vista. Como num cinema. Johnny, um ensaísta, ofereceu um Vogue para uma noite plena.
Uma noite indecente foi embalada pela passion de um casal carente. May disse please. E em sua mente, Johnny Pepper sossegou-a até sorrir feliz.

Amanheceu, e o coração de Johnny de sua musa se esqueceu. Because the love logo se move quando em tudo chove.

May voltou ao Rio.
Johnny sorriu.
May fugiu do norte;
Não teve sorte.
May cantou Come Back
E abriu um leque
Para lembrar-se de Pepper.

sábado, 21 de novembro de 2009

Namoradinha do Brasil

  Era uma vez uma garota dentro de um caminhão. Tinha um volante no horizonte e um motor no coração. Não entendia que na vida lhe faltava constância. Vivia cheia de liberdade, até que ela gerou-lhe a ânsia. Não ânsia de viver ou de se libertar. Era ânsia de paz ter, ânsia de ser um lar. Fazia paradas para vomitar. Sentia-se mareada só em sentir o cheiro do mar. Lentamente, um mundo com um único habitante fazia-se em sua barriga bronzeada. Sutilmente, uma vida se formava deixando-a despedaçada. A vida lhe trazia medos; lágrimas escorriam-lhe pelos dedos. Sua alma era viajante, não tinha outro dom. Percorria a vida cantando sem perder o tom: "Batom na boca, sangue no quadril. Naturalmente, namoradinha do Brasil".
  Até que um dia, seu corpo desabou; um vento forte soprou e a bolsa estourou. Pode não parecer, mas até que doeu. Um novo humano saiu e gemeu. Agora era uma mãe, e um pai também. Sabia que para ela a vida não diria amém. A criança era bonita e tinha os olhos azuis. Viveria uma vida esquisita em meio ao som do blues.
  A mãe não tinha cuidado. Vivia em função de um ou outro namorado. Gostava das noitadas e de toda boemia. Gozava nas viradas de ano, e era só poesia. E quando (se) acabava, pedia mais, pedia mais, pedia mais. Dizia please. Mas, bem lá na verdade, queria bis.
  E o bebê sorria. Sorria com sorriso de sorrir fotografia. A vida lhe era festa e o sangue lhe fervia. Fizera oito anos e odiava maresia. Numa noite sombria punha-se a rodar.
  Até que um dia, veio-lhe a fúria e a incomunal rebeldia. O garoto fez-se injúria para uma vida que ruía. Fizera 15 anos e cansara-se das noitadas à beira-mar. Deu adeus as namoradas e ao seu nômade lar. A vida lhe chamou e ele foi lá.
  A mãe o ignorou. Disse 'vai', o filho foi e lá voou. Em seu caminhão pôs-se a dormir. E, com um novo amante, a sorrir.
  Até que acabou-lhe a sorte. A Garota do Caminhão chegou em seu leito de morte. Um câncer lhe destruiu o coração em um só corte. Morreu abraçada a foto do filho fugido. E ele, no Sergipe, nunca soube que sua mãe tinha morrido.

domingo, 1 de novembro de 2009

A pergunta

Era um domingo de manhã, entre tantos que esta família já havia passado. A rotina não mudara: o pai lia o jornal, sentado no sofá, a mãe tricotava uma nova roupa para o pequeno que viria logo menos, e a filha caçula brincava com os blocos de montar no tapete. Uma típica família respeitável.

- Mãe, o que é sexo?

A mãe derrubou as agulhas e a linha no chão. O pai largara o jornal imediatamente. Meu Deus, sua pequena, falando em sexo, nessa idade? Esse mundo está perdido!

- Filhota - o pai ainda estava sobressaltado -, onde foi que ouviu isso?
- Na escola, ué.

"Ok, aja naturalmente. Ela tem seis anos. Não vai entender muita coisa. É só enrolar com o papo da sementinha e, tenho certeza, ela vai parar com isso"

- Então, é assim: o papai, quando viu que o amor que tinha pela mamãe era muito, muito grande, plantou uma sementinha dentro da barriga dela. Essa sementinha cresce feito o feijão que você plantou na escola, lembra? Vai vindo folhinha por folhinha...
- Pai, isso eu sei. Eu quero saber o que é sexo!
- Amorzinho - a mãe tentava interceder, diante do desespero evidente do pai -, posso conversar com o seu pai, pra eu já te contar o que é... É... Sexo?
- Tudo bem, vai. Mas, quando eu voltar, vocês vão me contar o que é sexo?
- Vamos, eu prometo.

A filha saiu batendo o pé. Os pais se entreolharam, assustados.

- Querido, acho que já tá na hora de ter esta conversa.
- Não mesmo! Eu só fiquei sabendo quando tinha uns dez anos. Tá cedo demais. E, além disso, essa escola, hein?
- Tava pensando nisso, também.
- Ah, não, ela tá voltando.
- Amor, seja natural. Não é um assunto tão difícil assim...

A pequena desceu a escada, a expressão normalizada.
E um caderno debaixo do braço.

“Ah, ela deve ter a explicação nesse caderno. Tão pequena, já estudando essas coisas? Pô, é a primeira série...”
“Até ontem ela nem sabia ler... Será que eu perdi tanto assim do crescimento da minha filha?”

- Mãe, é por causa disso aqui.

E para alívio geral, os pais constataram que o sexo que a filha se referia era apenas isto:

Sexo: ( ) masculino ( ) feminino

- Mas, mãe, onde eu assino?
- ...

sábado, 10 de outubro de 2009

Mentalmente.

Ele realmente acreditava que aquela seria a última vez. Viera ensaiando mentalmente as palavras que há semanas formulou. Desculpa, mas me explicar não é do meu código de conduta. E eu só quero que o nosso terminar não seja um desgostar. Péssimo. Só faltou o não é você, sou eu. Ele nunca fora bom, tanto com términos quanto com inícios. Com ela, tudo havia sido diferente. Ele não a procurou. Ele não a quis. Ela correu pro ataque.

Não que eu não goste dela, tentava replicar, ainda mentalmente. É questão de ego. O valor maior está na própria conquista. Engoliu seco, para continuar. E, neste caso, o conquistado fui eu.

De certo, não formavam um casal comum. Amigos lhe perguntavam como ele conseguira uma namorada tão geniosa. Como se eu soubesse!, pensava ele. Era tudo culpa do acaso. A festa, a bebida, a garota. Ele estava no lugar errado, na hora errada. Talvez fosse apenas uma coincidência infeliz.

Olha, lá esta ela. Bonita, do seu jeito. Birrenta, como nascera. Ela, toda. Sua?

- Você demorou. Droga, eu já disse que não gosto de esperar.

E ele não soube explicar nem como, nem o porquê. Aquela atração-repelida, olhar de fúria recolhida, o sorriso entrecortado pela bronca... Tão familiar. Tão ela. Tão sua.

Todos aqueles pensamentos se desfizeram em nuvens. Peculiarmente, ele a amava. Mesmo que não mentalmente.

sábado, 3 de outubro de 2009

O (des)amor nos tempos da gripe suína

_Me deixa ser o dono do teu coração.
_Ele já tem dono!
_Me deixa ser o gerente, então.

Foi numa festa de aniversário em que os dois se conheceram. Vi tudo. Eu estava lá vagando por entre os corredores daquele tão grande apartamento em Itapuã. A música era de carnaval antigo, desses que só se vê na televisão. Ah, só para constar, eu odeio televisão. Eu nunca apareço bem nela. Acho que ela me engorda. Voltemos ao casal:

_Olha que a gerência é cargo de grande responsabilidade!
_E olha que vê-se em mim a representação humana da confiança.
_Quero só ver.


Despiram-se dois meses mais tarde por menos de meia hora. Despiram-se e atacaram-se no estacionamento da universidade. Que vergonha! Eu estava lá acompanhando tudo, com cautela para não tocar nos dois, numa distância segura. Ele não queria porque ele era a representação humana da paciência em Salvador. Ele só queria ser gerente do coração. Eu bem que o avisei. Olha, não estranha, mas essa menina é cheia de manha. Ele pareceu ignorar-me. Adiantemos e vamos para alguns meses mais tarde.


_Olha...
_Estou olhando.
_Não é olha de olhar. É olha de escutar.
_Hã?
_Escuta.
_Estou escutando.
_Bom que esteja.
_Fala logo que eu tenho aula de Metodologia Científica.
_Estou grávida.
Ele deu o silêncio como resposta e olhou para o chão. Havia duas formigas carregando um pedaço verde de folha. As duas começaram a disputar pela insignificante folha. Ela partiu-se em duas e cada uma ficou com uma parte. O silêncio se quebrou com sua voz áspera arranhando-lhe a garganta e nadando na atmosfera:
_Tira.
A lágrima ameaçou cair do rosto caboclo da gestante. Ele repetiu:
_Tira.
Ela tentou dar-lhe um tapa. Mas o sangue não conseguiu chegar aos braços. Ele repetiu:
_Tira.
Ela não tirou. E foi aí que eu entrei.


Alguns dias depois, na maca do hospital, ela estava deitada e desacordada. O filho morto na barriga, assassinado por mim, o vilão da história segundo a televisão. Ela não tinha lá muita respiração, na verdade, estava morta. Só me lembro que também vi o genitor daquela tão nati-morta criança naquele mesmo hospital. Mas ele sobreviveu. E, uma semana depois, estava naquele mesmo apartamento em que os dois se conheceram, numa outra festa, com uma outra garota. Ah, eu odeio televisão, só para constar.

domingo, 27 de setembro de 2009

Plateia de seu próprio monólogo


Era lágrima. Ele queria ter nascido palco. Ele não queria ter nascido plateia. Mas assim ele nasceu. E tinha de carregar o fardo de ser o que ele não queria ser para satisfazer a um mundo que não a ele pertencia. Era lágrima. E a carne que o vestia era a mesma que o vinha despindo e o tornando servo de si mesmo. Tinha vergonha de ter nascido ele. Aquele rosto frio e feio e o corpo disforme não poderiam ser seu. Ou poderiam? Céus, por que sofria? Por que sofria calado? Por que não se manifestava ao mundo de água e terra, não saía e libertava-se deixando a alma voar e esvair-se? Eu não sei. E quando encontrar-me com ele, saberei dizer apenas isto: É lágrima.
A morte veio para ele como um toque de liberdade, de arrebatamento precoce - ou tardio? Morreu na avenida em horário de pico por entre vários outros cadáveres que, seguros em suas prisões individuais, dirigiam para suas casas. Talvez a morte o tenha levado para sua verdadeira casa. Sei lá...

domingo, 20 de setembro de 2009

Sobre o amargo do amor

Talvez fosse apenas o cinza dos dias ou o desequilíbrio da razão, mas quis por assim mesmo ver um amanhecer. Amanhecer, que era o perfeito oposto do entardecer que propusera outrora. Talvez fosse loucura sua ou uma simples ilusão de ótica, tudo parecia estar em par. Os cachorros roubavam ossos, as crianças corriam, os jovens namoravam. Apenas as árvores, coadjuvantes daquele filme açucarado estavam sozinhas.

Eram árvores grandes, de folhagens fartas e repletas de flores. Aparentavam estar firmadas naquele parque há décadas. Talvez fossem apenas testemunhas de amores, dores públicos - e de sua sozinhez, agora. Eram imponentes, como se dissessem que podiam sim, serem tão bonitas, mesmo que sem pares.

E enquanto todos os pares do mundo uniam-se em um coro agudo e insuportável ao coração só, ele pensou no Sol, que conhecia de perto a verdadeira solidão. Sofrido o gigante alaranjado, que tinha a distância e a natureza como inimigas.

Engoliu com pesar o suco de fruta, tão doce que acabava azeda. As árvores, sozinhas, farfalham ao sabor do vento, rindo do rapaz que dizia que jamais conheceria dos dissabores de Eros. Mal sabia ele que já estava mergulhado no amargo do amor.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Treze Segundos

Avisou sua casa. Estava diferente, era-lhe familiar, mas diferente. O amarelo desbotado da fachada continuava pouco brilhoso, a relva pouco verde e a terra que consumiam os meros dois metros entre o portão e a porta de entrada continuavam no mesmo lugar. Mas tudo estava diferente. Tudo igual, mas diferente. Era como se o sol, antes brilhoso, ficasse mais amargo, mais desesperançoso, mais alaranjado. O sol alaranjado que ardia sobre sua casa, lhe incomodara, mas ele não fez nada a respeito. Deixou apenas as nuvens o cobrirem. Seu erro sempre foi esse. Deixar as nuvens do céu cobrirem o alaranjar do sol sobre o seu mundo. Podia até ser forte, mas não tinha a força necessária para devolver o brilho de verão ao Sol, seu legítimo dono. Roubara para si. E o estragara. É mágoa. E traição. Não aguentou o peso de seu coração cheio de sangue e de dúvida, e sentou-se na calçada em frente a sua casa. Jogou a moto no chão. Que importância tinha? É mágoa. Colocou os braços sobre os joelhos e olhou para o chão. Viu apenas a sujeira do concreto. Mas é melhor pensar que ele estava observando a sujeira de si mesmo. É mais viável. Treze segundos mais tarde, sem nenhuma útil e fidedigna reflexão passando pela cabeça de Joubert, apareceu sua irmã com seus olhos masoquistas sangrando por dentro e com um vestido cor-de-nada que combinava com o dia de ambos os irmãos. Joubert não olhou para trás. Sentiu a presença da menina pela atmosfera que os rondava silenciosamente. Samia ajoelhou-se por trás de seu irmão e abraçou-o pelas costas, envolvendo seus braços no pescoço de Joubert. Foi um abraço leve, mas cheio de espírito. Cairam duas lágrimas do rosto de Joub. Por algum motivo, houve o mesmo com a menina. Passaram bons minutos ali, naquela mesma posição, abraçados com o silêncio. Vez ou outra um barulho de carro passando na rua ou de um avião cruzando os ares invadia a paz dos dois. Mas o barulho era efêmero, não tinha importância. Estavam concentrados no futuro, no medo do amanhã. O desalento do sol alaranjado não era culpa de ninguém e era culpa de todo o mundo. E ninguém sabia disso. Infelizmente.

Trecho de O Sol Alaranjado,
livro de João Bertonie.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Um Conto Molhado de Sangue

A objetividade do noivo a assustava; queria tudo para ontem, almejava pôr as turbinas na frente do avião. A noiva teimava: "Só depois do casamento, já disse". Todos comentavam a saliência daquele noivo, por mais que aquilo, em pleno século XXI, fosse comum. Ora, quem mandou-a noivar-se com um volúvel daqueles? O pai, rigoroso aos costumes evangélicos, advertira: "Ele é do mundo, minha filha, ele é um mundano!", mas de nada adiantou. Ela não resistira àqueles olhos oblíquos, àquela voz com o sedutivo sotaque carioca, àqueles versos declamados em forma de atitudes. Mas as atitudes progrediram (ou regrediram) e agora estavam cheias das secundárias intenções. Euforia era o sinônimo daquela noiva. Fizeram de tudo para amenizar o constrangimento da pobre. Nem adiantar a data da boda dera certo: as insinuações do noivo foram tamanhas que ela teve de ceder aos seus caprichos; dera a si àquele que um dia seria seu esposo.

Estavam todos afoitos com o casório; faltavam apenas exatos trinta minutos para que as duas almas enfim tornassem-se um só espírito. O barulho do vai-e-vem de pernas naqueles corredores ("pra quê tanta perna, meu Deus?") foi de repente cessado. Súbito, um grito de dor preencheu o vazio daquele apartamento. Todos correram para o quarto da noivinha; era de lá que veio o estrondo de voz humana. Tirara a noiva seus olhos com o pente fino que não usava mais devido aos caracois de seus cabelos. Estava vestida de noiva, claro, e em seu farto colo estava escrito de batom: "Não sou pura, mas quero ser enterrada assim!".


sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Circo...

Súbito, arrepiou-se. Sentiu no corpo uma leveza estranha, como se voltasse a infância, como se estivesse num circo. Sim, num circo. Lembrara do dia que a infância ainda existia, quando vivia distante das máscaras de oxigênio que eram de uso obrigatório nas ruas da cidade, da neblina que invadia as casas e corroía os pulmões, dos constantes assaltos, da realidade da vida. Lembrara do circo. E sorrira. Porque o circo, na época em que a humanidade ainda tinha suas chances, era um parêntesis do mundo, uma tenda colorida onde o passado e o presente se encontravam e provocavam furiosas batidas de coração seguidas de vários risos e sorrisos abertos. Lembrara dos malabarismos extraordinários e das contorcionistas que, com toda a certeza de uma criança, não tinham ossos. Meu Deus, e o que eram mulheres que carregavam em seus ombros mais de duas famílias de palhaços? Ah, os palhaços. As piadas silenciosas, as maquiagens borradas com as lágrimas que saíam involuntariamente, as ingênuas e escandalosas brincadeiras. E os engolidores de fogo? Como seria a sensação que tinha quando o fogo adentrava seu corpo e depois saía furiosamente como uma fênix liberta? E, por fim, o espetáculo acaba numa escuridão toda escura, vinda depois dos aplausos de aprovação. E vai-se o circo que não volta mais.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Resignação

A senhorinha não saía da casa. O rapaz começava a inquietar-se. Diacho de demora! Se não precisasse tanto deste dinheiro, a mandaria pro inferno e sairia pra farrear. Ah, imaginação humana! Falar de como sua vida poderia ser o fazia pensar em outras vidas de outros alguéns, realidades tão distantes da sua.

Levantou-se do banco do carro, pois ouvira barulho de passos. A senhorinha vinha tão diferente. Aqueles anos de internato fizeram-lhe muito bem, pensou timidamente. Vinha com as bochechas coradas, o sorriso de anjo. Ela era um anjo. E ele, apenas um medíocre empregado. Baixou a cabeça.

- Fez boa viagem, senhora?
- Fiz sim, obrigado por perguntar. O moço é o filho da sinhá Nastácia?

Congelou por dois segundos. Ela lembrara dele, o garoto que correra atrás da senhora-menina - e longe de ter toda aquela educação, ressaltou mentalmente -, dos pés elameados por estar sempre na baia, cuidando dos animais. Não que fossem muitos os momentos seus; vissem-na em sua companhia e era um peão correr, contar pro patrão e este dizer ao seu pai, tão perdido em sua subordinação, que cuidasse daquele preto retinto do seu filho, se não quisesse perdê-lo. O pai obedecia, temeroso do futuro.

- Sou sim.
- Faz tanto tempo que não venho da capital que até estranho este ar leve de se respirar. Nem lembrava da falta que sinto cada vez que disto desta cidadezinha esquecida do mundo.

Ainda estranhava a ausência do ruído dos carros, doas passantes apressados e alheios. Largar a capital, tão cosmopolita, para voltar para "aquele canto dos esquecidos", como diria sua mãe, era um desaforo. Porém, assim quis. Vivera durante muito tempo sob as ordens dos pais. Queria viver apenas sobre o comando de si.

- Seus pais não estão nada satisfeitos de terem a senhora aqui.
- Sei disso. Não precisa me chamar de senhorinha. Pelo menos não me chamava assim quando gritava "sua choramingas!"

Ele corou. Não esperava que ela, moça feita, lembrasse dos desvarios infantis. Acreditava que agora, estudada, só fosse comentar da capital, das artes. Da política, não - seu pai iria à loucura se ela desatasse a comentar de como fechava-se o circo na capital.

Ele ficara mais gentil agora crescido, pensava ela em seu íntimo. Os tempos de baia ficaram em algum passado esquecido. As feições de moleque também estavam mais sutis e ela dizia, somente para si, que ele ficara mais bonito do que qualquer rapaz que vira nestes anos. Dissesse isso para qualquer um e ouviria um sermão de horas. Como ela, filha de um dos cafeicultores mais poderosos da região poderia querer qualquer coisa com aquele preto?

Entraram no carro e a conversa cessou. Ele olhava para a estrada esbarrancada, cheia de pedregulhos. Ele estava em pedregulhos. Não imaginava que vê-la novamente o deixaria assim.

Ela usava os pulos do carro como desculpa para seu tamanho desconforto. Admirava-o, quando tinha certeza que não era notada; e se fosse, o que diria? A sociedade não estava pronta para ele, nem para um nós, que se existisse, causaria tamanho estranhamento. O pai a deserdaria sem mais pensar; a mãe faria novenas para que a sua pequena recobrasse o juízo. Ele iria embora com o peso da culpa nas costas.

O carro parou, arrancando-a de sua divagação. A casa, grande e plana, lembrou sua vida. O comando de si era um desejo inatingível. A sociedade era rude, a realidade, imutável. Sua vida era uma linha reta, a qual não deveria sair um milímetro do planejado. Este era o mundo. Esta era ela.

sábado, 29 de agosto de 2009

Flor de Fel

Morrera. Não a morte que apodrece as carnes e expulsa do corpo o espírito, mas a verdadeira morte. Era bela até aquela morta viva. Rezava sem fé todos os dias a Nossa Senhora de Copacabana, mas, socialmente, dizia-se ateia.
Era uma manhã de um domingo de verão. Abria as cortinas. Uma lágrima caiu dos olhos mortos. Duas lágrimas, contou. Depois da décima oitava, parou de contá-las. Regara o rosto pálido. No calçadão, uma família, que poderia ter sido a sua, caminhava de mãos dadas. Ele fazia o papel do pai e do marido naquela esplendorosa paisagem. Ele, logo ele. Lembrava de um dos seus encontros diários: “Me fale a verdade, querida, o que sou para você?”. “Você é meu coração”, respondia ela, inocente. Não tardou muito para que seu coração fosse embora. O horizonte o fascinava; era um homem do mundo, de sangue inconstante. Agora trocava o mundo para tornar-se um cidadão de família. Cínico, repetia, cínico...
Desde então cultivava uma flor de fel. Amigos e parentes a aconselhavam a substituí-la por uma de mel. Rimava até! Mas eram rudemente ignorados. Ela gostava de sua flor de fel; achava-a elegante, fidedigna. Os amigos estranhavam, mas tratavam de acostumar-se. Deleitava-se em seu fel. E é claro que omitia isso até a morte numa entrevista de emprego. Mas ainda carregava consigo um resto de esperança. Esperança de ter esperança. Um dia teria. Ou não. O fato é que fora traída pelo seu coração, pela vida e por si própria. Ambos uns hereges desprezíveis. E a flor de fel continuava sempre e sempre lá, esperando o momento certo de atacá-la e entorpecê-la.
Olhou-se no espelho. Gostava do que via, mas não era recíproco. Sua imagem refletida a olhava com repugnância e desprezo. Iniciou-se um debate injusto entre a mulher e seu reflexo. Na verdade, todos os dias as duas brigavam. O reflexo apontava falhas, pontos fracos da mulher. Ria dela. Se derrotada, ela não se daria ao trabalho de incomodá-lo novamente o buscando no espelho.
Esqueceu o tenebroso espelho e foi passear. Pulava só nas cores escuras; o negro a atraía muito. Súbito parou. Pasmou-se. Uma rosa brotara no asfalto.
Mas a flor de fel continuava lá. Quietinha, mas continuava.
Acontece que no dia seguinte foi encontrada morta, de bruços em frente ao espelho. A flor de fel tinha medo da rosa do calçadão; tratou logo de estrangular a pobre mulher. A propósito, ela já estava morta, não fazia a mínima diferença. Morreu com os ossos de fora, tentando sair daquele vil corpo. Morreu sem sangue e sem coração. Custa dizer que ela era anoréxica? Não, acho que não...

terça-feira, 25 de agosto de 2009

A Terceira Perna

Era coxa a noviça, tinha que andar com três pernas. Sofria o caos por isso; quem respeitaria uma noviça manca que andava com uma bengala, afinal? Queria correr, jogar futebol como todas as outras, mas a juventude lhe fora tirada para dar espaço à terceira perna. Odiava a terceira perna. A insultava todas as noites, quando a colocava ao lado da cama, antes de rezar para algum desses não muito poucos santos que existem por aí e pedir perdão a Deus pelos palavrões pronunciados. Odiava igualmente o seu corpo deficiente; chegara a açoitá-lo uma vez, mas a dor foi forte, não o fez mais. Ia diariamente dar sua contribuição à humanidade nos campos de concentra... creches nas comunidades carentes do Rio. Ali fazia qualquer diferença que fosse; sentia-se mais útil que lendo os intermináveis versículos de uma Bíblia incompleta. Era ‘simpatizada’ com diversos traficantes, o que adiantava seu trabalho. Numa dessas idas e vindas de ônibus da vida, a noviça coxa esbarrou-se num rapaz que também tinha uma terceira perna. Ele usava óculos negros como a noite e sua terceira perna era bonita, elegante e igualmente negra. Ao aproximar-se, descobriu que ele era cego:

_Ô, tens olhos e não vê?
_Sim! _ respondeu-lhe num sorriso de propaganda de creme dental.

Deste dia em diante, punha-se a conversar com o cego numa frequência assustadora. Num dia discutiram política, sociedade e economia universal. No outro conversaram de Sócrates, Platão, Aristóteles, Cristo à Shakespeare, Cervantes, Machado, Clarice Lispector e Jane Austen. No outro falavam de televisão, rádio, jornais, revistas e internet. E já no outro não tinham mais o que conversar; começaram a gaguejar e falar cada um sobre o si, sobre o mais íntimo do seu eu e sobre sua terceira perna. Já na quinquagésima nona conversa no mesmo ônibus de sempre, não viram outra saída daquele ciclo eterno de bate-papos senão se casarem. Uniram-se então em matrimônio eterno enquanto dure a coxa e o cego. Deus os perdoaria; eram inocentes e ingênuos nessa vida, para eles havia perdão e bênção.

A coxa continuou coxa, claro, mas passou a amar sua terceira perna, seguindo o exemplo do marido. A beijava e a punha ao lado da do seu esposo, gostava de vê-las juntas, uma inclinada sobre a outra, mostrando-se atenciosa e apaixonada. Depois do sétimo filho, a coxa levou o seu marido para fazer a vasectomia. Coitado, nunca fizera cirurgia alguma antes. Hoje eles vão muito bem, obrigado! O cego agora tem alguém para guiá-lo além de sua terceira perna, e a coxa tem os óculos escuros que tanto almejava. Nossa Senhora de-Alguma-Coisa olha torto para ela, mas, em resposta, a coxa dá de ombros, guia seu marido e tudo vai bem.

sábado, 22 de agosto de 2009

Coluna dolorida

E lá estava ele, na frente do todo-poderoso da redação. O chefe. O manda-chuva. O cara. Todos aqueles que, atrás da porta envidraçada, estavam digitando freneticamente qualquer matéria digna de alguma notoriedade desejariam mais do que tudo estar sentados onde ele estava. Não, não podia fazer feio.

- Café?
- Não, obrigado.

O que dizer pra um cara que já viu de tudo na vida? Aquilo era raposa velha. Devia estar, provavelmente, há mais de 30 anos no meio jornalístico. Era conhecido pelo seu senso de humor um tanto negro e o sarcasmo evidente. Um homem adorado ou odiado. Ele estava naquela situação. E, com certeza, ser odiado não era uma boa ideia.

- Então, meu jovem. Você está aqui por uma chance que qualquer um naquela redação gostaria de ter. Uma coluna não é como estes artigos de "Idosa morre engasgada com sua dentadura". Coluna é um chamariz, só escreve quem é bom. E eu te acho bom, pelo menos até este momento. Quero algo original. Alguma dúvida?

- Dúvida, não. Só um pouco de surpresa.
- Então, vamos lá. Uma experiência. Escreva um esboço para segunda-feira. O assunto que quiser. Ora, vamos lá, não pode ser tão difícil.

Saiu da sala, com uma expressão indecifrável. Estava feliz, com certeza. Porém, a insegurança era grande. Ele, um colunista? Ele era jornalista - diplomado, fazia questão de ressaltar - a menos de cinco anos. Não tinha nenhum prêmio, nem cargo alto. Era só um cara que tivera sorte. Era sexta feira, melhor. Teria todo o fim de semana para pensar em algo.

Sexta à noite, cerveja com os amigos. Decidiu não contar nada - já pensou se não desse certo, com que cara ficaria? Sábado, o dia todo com a namorada, que não parava de insistir no casamento. Droga, por que mulher quer saber tanto de casamento, meu Deus? É ótimo só vê-la quando está de bom humor, não aguentar sua TPM e, principalmente, correr feito diabo da cruz quando era resolve discutir a relação. Fora que, se casassem agora, ela tocaria no seu ponto mais sensível: filhos. Pirralhos correndo pela casa, amassando seus papéis, querendo desmontar o controle da tevê. Não, ele realmente estava bem desse jeito. Domingo, almoço na casa dos pais, que simplesmente não entendiam como aquele vagabundo de outrora conseguira se formar com louvor em um curso tão concorrido. Os dois, diabéticos, comiam apenas pratos que estivessem de acordo com suas dietas e, com certeza, o gosto não era dos melhores. A irmã mais velha só falava do marido, o qual havia conseguido um emprego com ótimo salário em uma multinacional. O caçula ainda era novo - quinze ou dezesseis anos, não lembrava - e ainda estava na fase de msn-futebol-garotas-cama-garotas-videogame. Menino sortudo. Quisera ele essa vida de trivialidades...

Chegou em casa e deu-se conta que nada havia feito. A suposta coluna estava tão vazia quanto seu empenho em escrevê-la. A sua doía. A dúvida e o medo corriam em suas veias, como sangue. Ajeitou-se na cadeira, ouviu um estalido. A coluna. A porcaria da coluna estava doendo, de novo.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Dança na Rua

_Bom dia, Maria Estela!
_Bom dia. Ei, estou bela?
_Está sublime como uma rosa de primavera.
_Pare de mentir. Uma rosa... quem me dera!
_Está preparada para o Carnaval?

_Que animação é essa? Isso nem é de todo mal!
_É que dói-me a mente, e a cabeça arde.
_Você está é decadente, isso não merece alarde.
_Ora, não amola. Entre no carro, baixinha, e vamos logo pra esse inferno.
_Não fale assim, não tire sarro, não sou seu subalterno!
_Eu venho aqui, tiro da boca o cigarro, uso até gravata e terno e você ainda me vem com exigências?

_Oh, depois fala que eu sou cheia de drama!
_Vamos logo para essa festa senão tua mãe nos reclama!
_Esqueci de maquear a testa, sem ela não pareço uma dama!
_Mais essa!

_Está com pressa?
_Não, é que fizemos a tua mãe uma promessa...
_Este é um dos teus problemas, Eduardo, está sempre me apressando!
_Não me venha com tuas algemas, Estela, já estava demorando!
_Além do mais, a festa é daqui a meia hora.

_Não, se estivesses pronta há meia hora chegariamos ainda na aurora. Mas já é tarde, perdemos a festa e a culpa é tua!
_Calma, não me devora! É que sem maquiagem me sinto nua!
_Agora é tarde; vamos nos arrumar.
_Não seja covarde; vamos dançar!

_Dançar? Está louca?
_Tu que és covarde!
_Tá, então vamos lá. Já que você está nua...
_Vamos dançar na rua!

sábado, 15 de agosto de 2009

Beberrão.

- Só mais um copo, seu moço.
- Você disse isso há duas horas atrás.
- Há duas horas atrás eu nem tava pensando em parar.
- E tá pensando em parar agora?
- Cala a boca e me dá logo a porra do copo!

- Sabe que horas são?
- Hora do senhor sair dessa mesa, qu'eu tenho que fechar o bar.
- Eu perguntei a hora, não o que seria mais sensato fazer.

- 'Cê não tem família não, rapaz?
- Tenho. Minha mulher deve tá no culto, rezando pra eu voltar pra casa ainda hoje. Minha filha... Deve tá com outro namorado. Meu filho vai vir aqui daqui a pouco, pode ver.
- Seguindo o bom exemplo do pai?
- Bom porque ele gosta. E eu dispenso a ironia.

- Um tempo atrás eu diria que cerveja tem um gosto horrível e que bar é pra fraco.
- Acho que já passou bastante tempo...
- É. Passou o tempo, passei eu.

- Amigo, vou embora.
- Já não era sem tempo. Dá pra andar até em casa?
- As pernas andam. A dignidade, não. Ah, aliás, vê mais uma aí?

- Você é bem chegado a um auto-tirada, não é?
- Claro! A vida ri de mim, eu rio de mim, eu rio da vida.
- Peculiar esse seu humor.
- A melhor piada que eu posso fazer é sobre mim; já que eu não vou chorar, me deixa rir.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Proposta de Fel

Já dizia um certo Joaquim que as leis são belas. E são mesmo. Tanto que não muito tardou para que a filha do dono da padaria se mudasse para Brasília como deputada federal. Encontrara-se na política, mas tinha um defeito que a impedia de realizar muitos de seus planos: era honesta, por nada nesse mundo se deixaria corromper-se. Ou ao menos assim pensava. Poucos entediam – nem ela entendia, afinal... – como ela conseguira se eleger sendo de toda honesta. Mas conseguira, era o que importava. E as leis eram belas...
Ocorreu-lhe que, já na sua primeira semana de Congresso, recebera uma proposta, a mais indecente das propostas, melhor dizendo. A proposta era clara, breve, objetiva, de fel... Indignou-se ao lê-la. Como podia, meu Deus? Caso aceitasse, a proposta a fortaleceria no cenário político. Mas era uma mulher que vestia o vestido da transparência, da ética, mesmo com a grossura e escuridão de suas roupas. Ah, besteira; esquecera seus escrúpulos na bolsa, tomou coragem, disse sim e compareceu ao apartamento da proposta naquele sábado à noite.
No dia seguinte, encontraram-na deitada de bruços na praça pública, com um óculos que não era seu e as mãos costuradas na boca. Estava enfim quieta e dormia no marasmo sono da morte. Pobre deputada! Esquecera que a honestidade era para os fortes de espírito e portadores de sangue rubro de forte. E ela era apenas a filha do padeiro. Antes de agonizar violentamente no chão de concreto, quando uniram suas mãos com agulha e linha em seus lábios, lembrava-se das palavras maternas. “Não há espaço para a honestidade a menos que sejas forte. E é preciso de força para saber ter força, minha filha, por isso não te envolvas com política”. Por que, afinal, ignorara os doces conselhos da velha mãe? Por quê? É, senhora deputada, as leis são belas. São belas e cheiram a sangue.

domingo, 9 de agosto de 2009

Doces deletérios

Ele a encara. Respira fundo duas vezes. É um momento difícil para ambos.

- E então? É tudo o que tem a me dizer?

- Não, não é. Eu gostaria de dizer que você é um estúpido, e talvez esta estupidez tenha feito com que eu estivesse com você por tanto tempo. Que você, quando me apressava pra sair, me fazia ficar louca de raiva. Mas, quando você me via pronta e dava aquele sorriso malicioso de canto de boca, eu me sentia a mais bonita das mulheres. Que você à noite ronca, mas é o som mais delicioso de se ouvir. Que você desmarca um jantar que nós esperávamos por semanas em cima da hora, pra na manhã seguinte, me acordar com um café da manhã na cama. Que você conta as piadas mais sem-graça, adaptadas aos contextos mais impróprios, me fazendo rir involuntariamente. Que você dá o fora quando vê que eu tô de TPM, mas volta uma hora depois com duas caixas de chocolate. Que você dorme quando a gente assiste uma comédia-romântica, mas com os seus braços me segurando forte. Que você nunca lembra de abaixar a tampa do vaso, mas sempre ouve a minha reclamação, sem responder. Que você briga comigo e, quando me vê chorar, me abraça e diz que foi da boca pra fora. E isso me faz querer te matar e, depois, te beijar até o dia raiar. Que você diz que fui eu que arranhei o carro, diz que eu não tenho cuidado e completa depois com uma risada infantil que a culpa pela torradeira ter queimado é sua. Que, quando você apressado de manhã eu tenho vontade de dizer que você leva um pedaço meu, que só volta à noite, na hora que você chega. Que você, agora, não deve tá nem escutando o que eu digo. Que, quando você sair daqui hoje, vai se sentir arrependido, mas, por orgulho, não vai pedir pra voltar. Que, se isso acontecer, eu vou primeiro me sentir feliz por ter terminado algo aparentemente sem futuro, depois vou chorar duas semanas inteiras e depois, me jogar no primeiro filho da puta que aparecer. Que, no futuro, nós vamos nos encontrar e vai ter aquele silêncio incômodo, de não saber o que falar um pro outro. Que eu vou ter vontade de dizer que eu não queria ter terminado tudo tão cedo, mas vou ficar calada. Que você vai querer dizer que as coisas poderiam ter sido diferentes, mas vai preferir falar do seu novo emprego. Que nós seremos duas pessoas sem direção. Que você, agora, vai embora. Que eu vou ficar te olhando ir. Que, depois, vou correr até o fim da rua, em vão. Porque o carro já vai ter ido embora.

Dez meses depois, eles continuavam brigando; desta vez, porém, era para decidir quem levantaria para ver o porquê do filho estar chorando.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Moça Pagã

Moça,
É preciso ter força,
É preciso ter sangue,
É preciso ter raça,
É preciso desgraça
Para que se perceba
A leveza da graça,
A graça da leveza
E a vã sutileza
Que não há nessa vida,
Nessa aberta ferida
Que tu tens contida

E num sorriso espremida
Que não foi o que Deus

Preparou para tiMoça,
Venha cá, vem comigo
Te dou teto e abrigo
E também um ombro amigo
Para chorar tuas mágoas
Nestes olhos tem águas,
Águas que jorram da alma,
Da tua alma carente,
Chega a ser decadente,
Decadente e indecente,
Pois tu'alma está nua
Vestida apenas com o brilho,
Com o brilho da lua
Que não foi o que Deus
Preparou para ti

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Soco no estômago

_Aonde está sua irmã, hein?
_Não sei. Por acaso sou eu a guarda da minha irmã?
_Isso é jeito de falar comigo, menina? Peça desculpas, anda!
_Desculpa.
_Não ouvi, sua peste!
_Des-cul-pa!
A mãe foi dormir; a filha mais velha sumiu, mas que importância tinha isso? Mais cedo ou mais tarde seria uma filha pródiga. Ou não. Que importava? As estrelas já iam sumindo quando a tal primogênita resolveu aparecer. A garotinh
a cochilava o mais doce dos descansos infantis no sofá da sala quando a porta se abriu. A irmã chegara com os olhos rubros como se fossem explodir - eram duas dinamites, afinal - e com o bafo quente. Ela era altiva, magra de ruim, cabelos longos e negros. Beleza igual não havia em canto nenhum do continente. Mas era gauche por natureza, por sangue e por opção. Voltou com um alvo sorriso triunfante. Porém, em seu âmago, seus olhos brotavam cachoeiras. Abraçaram-se as irmãs sob os gritos da mãe com a mais velha. Abraçaram-se porque eram irmãs, e irmãs precisam apenas de um olhar para comunicar-se. As drogas matavam lentamente a primogênita e indiretamente a mais nova, ela sofria por ambas. Era um anjo. E anjos não costumam passar longas temporadas na Terra.Era domingo, o melhor dia da semana para a menininha, pela grande alegria de não ter nada a fazer. Passavam reprises de filmes dos anos 70 na grande e velha televisão da sala, quando três violentas batidas na porta de madeira lascada a fizeram quase derramar seu copo de café com leite. Ainda bem que quase, porque o leite já acabara, e leite nessa época do ano era caro. Abriu a porta com o cuidado que a mãe recomendara e foi atropelada por um sujeito forte e mal encarado que portava em uma de suas mãos aquilo que chamavam de arma de fogo. De armas de fogo só entendia o que via nas novelas. Mas quando viu-a pensou se tratar de uma de brinquedo e tratou logo de correr, mas foi detida com um soco no estômago. Não doeu. Dor, o que era a dor? O que era a dor para quem nunca experimentara a vida? Pensando bem, doeu sim! Doeu porque o poço da invisibilidade e da inexistência social não tem fim, e qualquer dor é a pior dor do mundo. E como dói o mundo! Se a menininha tivesse voz e alma naquele instante, diria o mesmo que Clarice Lispector: "A vida é um soco no estômago". Morrera a menininha dias depois no hospital. Percebeu que o mundo lhe agrediu, que aqui não era benvinda. Pregou algo no nariz que a impedia de respirar e caminhou até a mais ofuscante luz que viu pela frente...

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Gripe suína

Preciso comprar sabonete líquido, tá em promoção. Não quero te ver dar um passo pra fora de casa, ouviu? Agora, come a salada. Adiaram as aulas por quinze dias, vamos fazer a ceia de natal na faculdade. Nem pro Lula ter gripe suína. Aliás, não só ele, o senado todo. Qual o quê, vaso ruim não quebra. No meu tempo, todo mundo já teria morrido. É claro que o Brasil tá preparado. Todo mundo vai pegar esse vírus, 'péra só pra ver! Máscara é pra fraco. É o começo do fim do mundo, pode escrever. A amiga da tia da minha prima de terceiro grau tá infectada, será que eu corro risco? Se o SUS não conseguia lidar nem com a gripe sazonal, imagina só com essa. A culpa é dos ianques, sempre é deles. Droga, enfermeiro deveria receber aumento de salário. 'Cê sabe que lá na capital essa tal de gripe suína tá pegando, né? 'Inté parece que chega aqui. Consegui fugir de casa, mas, se minha mãe descobrir, vai querer desinfetar até minha alma. É tudo culpa do capitalismo. Tanto faz a pandemia, a gente continua subdesenvolvido mesmo. Ah, nem ligo. Uma hora vou ter que morrer mesmo. Atchim, oinc!

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Recepção

Sejam benvindos, nubis. Estamos aqui hoje, agora, nesse exato momento, segundo, centésimo, milisegundo, no premier da estreia (só pra dar mais ênfase, ok) daquele que será o melhor blog de todos os tempos da última semana. A casa de mendigos - mendigos de classe, que fique claro! -, o Hotel de Papelão. Claro, esse blog será igual a tantos outros que existem por aí que você com certeza já viu nessa LONGA ESTRADA da VIDA, mas o nosso Hotel é liderado por dois malucos, suburbanos sem dignidade, duas antíleses, dois espíritos inversamente propocionais (bu!) - ou não. Mas fiquem tranquilos; nenhum de nós dois vê escadas rolantes no meio do shopping como monstros prontos para devorá-la. Guardem no âmago do âmago de vocês o dia do hoje; um dia ele há de ser feriado nacional.

Porque o mundo é cheio de poetas, e isso não significa que o mundo é cheio de poesia. A poesia faz-se por si só; em versos ditos através de atitudes, de súbitos olhares na multidão amarga, de sorrisos espontâneos recíprocos. A poesia insiste em viver por entre a selva de carne, de pedra, de fumaça, de dinheiro. E ainda há aqueles que a ignoram, como se ela simplesmente não existisse. Ora, acorda hipócrita! Acorda que a vida é bela, "tem sangue eterno e asa ritmada". Acorda que vive um poeta dentro de você. A poesia não está nos dólares que tanto almeja, acorda e vire um mendigo. Vire um mendigo e se hóspede num Hotel de Papelão...