terça-feira, 25 de agosto de 2009

A Terceira Perna

Era coxa a noviça, tinha que andar com três pernas. Sofria o caos por isso; quem respeitaria uma noviça manca que andava com uma bengala, afinal? Queria correr, jogar futebol como todas as outras, mas a juventude lhe fora tirada para dar espaço à terceira perna. Odiava a terceira perna. A insultava todas as noites, quando a colocava ao lado da cama, antes de rezar para algum desses não muito poucos santos que existem por aí e pedir perdão a Deus pelos palavrões pronunciados. Odiava igualmente o seu corpo deficiente; chegara a açoitá-lo uma vez, mas a dor foi forte, não o fez mais. Ia diariamente dar sua contribuição à humanidade nos campos de concentra... creches nas comunidades carentes do Rio. Ali fazia qualquer diferença que fosse; sentia-se mais útil que lendo os intermináveis versículos de uma Bíblia incompleta. Era ‘simpatizada’ com diversos traficantes, o que adiantava seu trabalho. Numa dessas idas e vindas de ônibus da vida, a noviça coxa esbarrou-se num rapaz que também tinha uma terceira perna. Ele usava óculos negros como a noite e sua terceira perna era bonita, elegante e igualmente negra. Ao aproximar-se, descobriu que ele era cego:

_Ô, tens olhos e não vê?
_Sim! _ respondeu-lhe num sorriso de propaganda de creme dental.

Deste dia em diante, punha-se a conversar com o cego numa frequência assustadora. Num dia discutiram política, sociedade e economia universal. No outro conversaram de Sócrates, Platão, Aristóteles, Cristo à Shakespeare, Cervantes, Machado, Clarice Lispector e Jane Austen. No outro falavam de televisão, rádio, jornais, revistas e internet. E já no outro não tinham mais o que conversar; começaram a gaguejar e falar cada um sobre o si, sobre o mais íntimo do seu eu e sobre sua terceira perna. Já na quinquagésima nona conversa no mesmo ônibus de sempre, não viram outra saída daquele ciclo eterno de bate-papos senão se casarem. Uniram-se então em matrimônio eterno enquanto dure a coxa e o cego. Deus os perdoaria; eram inocentes e ingênuos nessa vida, para eles havia perdão e bênção.

A coxa continuou coxa, claro, mas passou a amar sua terceira perna, seguindo o exemplo do marido. A beijava e a punha ao lado da do seu esposo, gostava de vê-las juntas, uma inclinada sobre a outra, mostrando-se atenciosa e apaixonada. Depois do sétimo filho, a coxa levou o seu marido para fazer a vasectomia. Coitado, nunca fizera cirurgia alguma antes. Hoje eles vão muito bem, obrigado! O cego agora tem alguém para guiá-lo além de sua terceira perna, e a coxa tem os óculos escuros que tanto almejava. Nossa Senhora de-Alguma-Coisa olha torto para ela, mas, em resposta, a coxa dá de ombros, guia seu marido e tudo vai bem.

7 comentários:

  1. Pak Karamu reading and visiting your blog

    ResponderExcluir
  2. Aff, como assim?!

    Porque essa istória de terceira coxa?!

    Eu li o texto (sei que é por causa das bengalas), mas eu gostaria de saber se era uma istória real, ou inventada...

    Fique com Deus, menina Sam e menino Bertonie.
    Um abraço.

    ResponderExcluir
  3. Amor para aqueles que parecia improvável. Ah, que coisa liiinda *----*
    Todos deviam amar sua terceira perna, né?

    ;*

    ResponderExcluir
  4. É fictícia, Daniel.
    Mas, como todas as outras do nosso Hotel, tem pigmentos de realidade em cada frase. É só ver (:

    ResponderExcluir
  5. Ótimo texto, viu. Parabéns.

    Te espero em meu blog...passa lá.


    abraços


    Hugo

    ResponderExcluir
  6. É. Parece real. Mas não é.
    Bem legal. :)

    ResponderExcluir
  7. Olá! Tem selo para vocês lá no blog!

    Até mais!

    ResponderExcluir

Caso o hóspede não aproveitou dos serviços desse hotel, a equipe do Hotel de Papelão acha melhor não usufruir dos meios de comunicação aqui presentes. Atenciosamente, Bertonie e Sam.
Resumindo: não leu, dá meia-volta e abraça a pessoa mais próxima. Mas não comenta. Beijo, nos liguem.