Era coxa a noviça, tinha que andar com três pernas. Sofria o caos por isso; quem respeitaria uma noviça manca que andava com uma bengala, afinal? Queria correr, jogar futebol como todas as outras, mas a juventude lhe fora tirada para dar espaço à terceira perna. Odiava a terceira perna. A insultava todas as noites, quando a colocava ao lado da cama, antes de rezar para algum desses não muito poucos santos que existem por aí e pedir perdão a Deus pelos palavrões pronunciados. Odiava igualmente o seu corpo deficiente; chegara a açoitá-lo uma vez, mas a dor foi forte, não o fez mais. Ia diariamente dar sua contribuição à humanidade nos campos de concentra... creches nas comunidades carentes do Rio. Ali fazia qualquer diferença que fosse; sentia-se mais útil que lendo os intermináveis versículos de uma Bíblia incompleta. Era ‘simpatizada’ com diversos traficantes, o que adiantava seu trabalho. Numa dessas idas e vindas de ônibus da vida, a noviça coxa esbarrou-se num rapaz que também tinha uma terceira perna. Ele usava óculos negros como a noite e sua terceira perna era bonita, elegante e igualmente negra. Ao aproximar-se, descobriu que ele era cego:
_Ô, tens olhos e não vê?
_Sim! _ respondeu-lhe num sorriso de propaganda de creme dental.
Deste dia em diante, punha-se a conversar com o cego numa frequência assustadora. Num dia discutiram política, sociedade e economia universal. No outro conversaram de Sócrates, Platão, Aristóteles, Cristo à Shakespeare, Cervantes, Machado, Clarice Lispector e Jane Austen. No outro falavam de televisão, rádio, jornais, revistas e internet. E já no outro não tinham mais o que conversar; começaram a gaguejar e falar cada um sobre o si, sobre o mais íntimo do seu eu e sobre sua terceira perna. Já na quinquagésima nona conversa no mesmo ônibus de sempre, não viram outra saída daquele ciclo eterno de bate-papos senão se casarem. Uniram-se então em matrimônio eterno enquanto dure a coxa e o cego. Deus os perdoaria; eram inocentes e ingênuos nessa vida, para eles havia perdão e bênção.
A coxa continuou coxa, claro, mas passou a amar sua terceira perna, seguindo o exemplo do marido. A beijava e a punha ao lado da do seu esposo, gostava de vê-las juntas, uma inclinada sobre a outra, mostrando-se atenciosa e apaixonada. Depois do sétimo filho, a coxa levou o seu marido para fazer a vasectomia. Coitado, nunca fizera cirurgia alguma antes. Hoje eles vão muito bem, obrigado! O cego agora tem alguém para guiá-lo além de sua terceira perna, e a coxa tem os óculos escuros que tanto almejava. Nossa Senhora de-Alguma-Coisa olha torto para ela, mas, em resposta, a coxa dá de ombros, guia seu marido e tudo vai bem.
Pak Karamu reading and visiting your blog
ResponderExcluirAff, como assim?!
ResponderExcluirPorque essa istória de terceira coxa?!
Eu li o texto (sei que é por causa das bengalas), mas eu gostaria de saber se era uma istória real, ou inventada...
Fique com Deus, menina Sam e menino Bertonie.
Um abraço.
Amor para aqueles que parecia improvável. Ah, que coisa liiinda *----*
ResponderExcluirTodos deviam amar sua terceira perna, né?
;*
É fictícia, Daniel.
ResponderExcluirMas, como todas as outras do nosso Hotel, tem pigmentos de realidade em cada frase. É só ver (:
Ótimo texto, viu. Parabéns.
ResponderExcluirTe espero em meu blog...passa lá.
abraços
Hugo
É. Parece real. Mas não é.
ResponderExcluirBem legal. :)
Olá! Tem selo para vocês lá no blog!
ResponderExcluirAté mais!