Morrera. Não a morte que apodrece as carnes e expulsa do corpo o espírito, mas a verdadeira morte. Era bela até aquela morta viva. Rezava sem fé todos os dias a Nossa Senhora de Copacabana, mas, socialmente, dizia-se ateia.
Era uma manhã de um domingo de verão. Abria as cortinas. Uma lágrima caiu dos olhos mortos. Duas lágrimas, contou. Depois da décima oitava, parou de contá-las. Regara o rosto pálido. No calçadão, uma família, que poderia ter sido a sua, caminhava de mãos dadas. Ele fazia o papel do pai e do marido naquela esplendorosa paisagem. Ele, logo ele. Lembrava de um dos seus encontros diários: “Me fale a verdade, querida, o que sou para você?”. “Você é meu coração”, respondia ela, inocente. Não tardou muito para que seu coração fosse embora. O horizonte o fascinava; era um homem do mundo, de sangue inconstante. Agora trocava o mundo para tornar-se um cidadão de família. Cínico, repetia, cínico...
Desde então cultivava uma flor de fel. Amigos e parentes a aconselhavam a substituí-la por uma de mel. Rimava até! Mas eram rudemente ignorados. Ela gostava de sua flor de fel; achava-a elegante, fidedigna. Os amigos estranhavam, mas tratavam de acostumar-se. Deleitava-se em seu fel. E é claro que omitia isso até a morte numa entrevista de emprego. Mas ainda carregava consigo um resto de esperança. Esperança de ter esperança. Um dia teria. Ou não. O fato é que fora traída pelo seu coração, pela vida e por si própria. Ambos uns hereges desprezíveis. E a flor de fel continuava sempre e sempre lá, esperando o momento certo de atacá-la e entorpecê-la.
Olhou-se no espelho. Gostava do que via, mas não era recíproco. Sua imagem refletida a olhava com repugnância e desprezo. Iniciou-se um debate injusto entre a mulher e seu reflexo. Na verdade, todos os dias as duas brigavam. O reflexo apontava falhas, pontos fracos da mulher. Ria dela. Se derrotada, ela não se daria ao trabalho de incomodá-lo novamente o buscando no espelho.
Esqueceu o tenebroso espelho e foi passear. Pulava só nas cores escuras; o negro a atraía muito. Súbito parou. Pasmou-se. Uma rosa brotara no asfalto.
Mas a flor de fel continuava lá. Quietinha, mas continuava.
Acontece que no dia seguinte foi encontrada morta, de bruços em frente ao espelho. A flor de fel tinha medo da rosa do calçadão; tratou logo de estrangular a pobre mulher. A propósito, ela já estava morta, não fazia a mínima diferença. Morreu com os ossos de fora, tentando sair daquele vil corpo. Morreu sem sangue e sem coração. Custa dizer que ela era anoréxica? Não, acho que não...
Hum...belo texto. Parabéns, viu.
ResponderExcluirTe desejo um ótimo final de semana.
abraços
Lindo texto, demonstra a realidade que tantas pessoas vivem. Vidas sem esperança, presas em um corpo de sofrimento. Ótimo, adorei.
ResponderExcluirEu tenho a impressão de quando você não é palhaço é assustador. Mas é fascinante. Essa história possibilita diversas interpretações, e o mais incrível é que pude ver todas as cenas e as sensações passando diante dos meus olhos. Notei algum sinal de moral nas entrelinhas, não sei dizer. Até no asfalto nasce flor..
ResponderExcluirUm beijo.
Adoreeeei mesmooo xP
ResponderExcluirSeu blog é Tudooo
Dá uma passadinha lá no meu Ok
To te seguindooo
Beeijoss
www.neverlandbyisa.blogspot.com
ou
www.bellafelippe.blogspot.com
Ah, muito, mas muito bom mesmo.
ResponderExcluirBer, como dizem aqui no sul, 'se superasse' nessa :)
Beijos!
Meio profundo, pois pelo o que eu entendi, ela já havia morrido, seja para ela mesmo, ou para a vida que ela esperava levar com o casamento...
ResponderExcluirFique com Deus, menino Bertonie.
Um abraço.