quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Proposta de Fel

Já dizia um certo Joaquim que as leis são belas. E são mesmo. Tanto que não muito tardou para que a filha do dono da padaria se mudasse para Brasília como deputada federal. Encontrara-se na política, mas tinha um defeito que a impedia de realizar muitos de seus planos: era honesta, por nada nesse mundo se deixaria corromper-se. Ou ao menos assim pensava. Poucos entediam – nem ela entendia, afinal... – como ela conseguira se eleger sendo de toda honesta. Mas conseguira, era o que importava. E as leis eram belas...
Ocorreu-lhe que, já na sua primeira semana de Congresso, recebera uma proposta, a mais indecente das propostas, melhor dizendo. A proposta era clara, breve, objetiva, de fel... Indignou-se ao lê-la. Como podia, meu Deus? Caso aceitasse, a proposta a fortaleceria no cenário político. Mas era uma mulher que vestia o vestido da transparência, da ética, mesmo com a grossura e escuridão de suas roupas. Ah, besteira; esquecera seus escrúpulos na bolsa, tomou coragem, disse sim e compareceu ao apartamento da proposta naquele sábado à noite.
No dia seguinte, encontraram-na deitada de bruços na praça pública, com um óculos que não era seu e as mãos costuradas na boca. Estava enfim quieta e dormia no marasmo sono da morte. Pobre deputada! Esquecera que a honestidade era para os fortes de espírito e portadores de sangue rubro de forte. E ela era apenas a filha do padeiro. Antes de agonizar violentamente no chão de concreto, quando uniram suas mãos com agulha e linha em seus lábios, lembrava-se das palavras maternas. “Não há espaço para a honestidade a menos que sejas forte. E é preciso de força para saber ter força, minha filha, por isso não te envolvas com política”. Por que, afinal, ignorara os doces conselhos da velha mãe? Por quê? É, senhora deputada, as leis são belas. São belas e cheiram a sangue.

8 comentários:

  1. Mundo esse cruel, bem verdadeiro seu texto, além de excelente.
    Sabemos o que é mentira ou verdade? certo ou errado?
    Só sabemos o que nos diz o coração, bjs

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  2. O seu senso crítico me encanta, de verdade.
    A história é tão verdadeira que pude imaginar as personagens, viajar pelas entrelinhas e perceber,mais uma vez, o quão desonesto se torna aqueles que esquecem o valor que tem.

    Parabénss!
    ;*

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  3. Ótimo texto, bem crítico e puro.

    Abraços

    Hugo

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  4. Me pego em um debate interno quando me ponho a pensar em política: será mesmo que ainda existe alguem honesto o suficiente para não deixar-se corromper? Afinal, dizem, tudo tem um preço.

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  5. Bertonie,
    Adorei o texto. Trágico, sádico e com uma verdade injusta e desonesta, mas existente.
    É difícil pessoas participarem de grandes projetos que envolvem tanta sujeira e sairem sem problemas, intocadas. E os honestos são fáceis primeiras vítimas.
    Achei muito inteligente a analogia ao silêncio, quando a mão da deputada foi costurada junto a sua boca. Cadáveres não podem se pronunciar, e por isso a morte é um método bastante utilizado para calar. Essa metáfora foi bizarra mas bela de certo modo.
    "É, senhora deputada, as leis são belas. São belas e cheiram a sangue."
    Poético e verdadeiro. As leis sempre causaram confrontos. E o modo e as palavras que você usou para escrever isso me abismam.
    Um dos melhores textos. Adorei.
    Beijos de uma mendiga satisfeita com o atendimento :*

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  6. Encantador, admirável, trágico e verdadeiro. Foram as qualidades que me vieram à mente ao vim comentar. Muito bom seu conto, muito sutil e crítico. Parabéééns Bert.
    bjos
    ;*

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  7. Esse texto prova que a verdade ou está relacionada ao sucesso ou a tragedia. E vale lembrar que as tragedia só vem depois que a "sua" verdade é corrompida.

    Parabéns, ótimo senso critico Bertonie!

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  8. Apesar da morte indigna, mensagem sublinar maneira...

    Pois o clima do politica está assim, mesmo se espaço para honestidade.

    Fiquem com Deus, menino Bertonie e menina Sam.
    Um abraço.

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Caso o hóspede não aproveitou dos serviços desse hotel, a equipe do Hotel de Papelão acha melhor não usufruir dos meios de comunicação aqui presentes. Atenciosamente, Bertonie e Sam.
Resumindo: não leu, dá meia-volta e abraça a pessoa mais próxima. Mas não comenta. Beijo, nos liguem.