terça-feira, 1 de setembro de 2009

Resignação

A senhorinha não saía da casa. O rapaz começava a inquietar-se. Diacho de demora! Se não precisasse tanto deste dinheiro, a mandaria pro inferno e sairia pra farrear. Ah, imaginação humana! Falar de como sua vida poderia ser o fazia pensar em outras vidas de outros alguéns, realidades tão distantes da sua.

Levantou-se do banco do carro, pois ouvira barulho de passos. A senhorinha vinha tão diferente. Aqueles anos de internato fizeram-lhe muito bem, pensou timidamente. Vinha com as bochechas coradas, o sorriso de anjo. Ela era um anjo. E ele, apenas um medíocre empregado. Baixou a cabeça.

- Fez boa viagem, senhora?
- Fiz sim, obrigado por perguntar. O moço é o filho da sinhá Nastácia?

Congelou por dois segundos. Ela lembrara dele, o garoto que correra atrás da senhora-menina - e longe de ter toda aquela educação, ressaltou mentalmente -, dos pés elameados por estar sempre na baia, cuidando dos animais. Não que fossem muitos os momentos seus; vissem-na em sua companhia e era um peão correr, contar pro patrão e este dizer ao seu pai, tão perdido em sua subordinação, que cuidasse daquele preto retinto do seu filho, se não quisesse perdê-lo. O pai obedecia, temeroso do futuro.

- Sou sim.
- Faz tanto tempo que não venho da capital que até estranho este ar leve de se respirar. Nem lembrava da falta que sinto cada vez que disto desta cidadezinha esquecida do mundo.

Ainda estranhava a ausência do ruído dos carros, doas passantes apressados e alheios. Largar a capital, tão cosmopolita, para voltar para "aquele canto dos esquecidos", como diria sua mãe, era um desaforo. Porém, assim quis. Vivera durante muito tempo sob as ordens dos pais. Queria viver apenas sobre o comando de si.

- Seus pais não estão nada satisfeitos de terem a senhora aqui.
- Sei disso. Não precisa me chamar de senhorinha. Pelo menos não me chamava assim quando gritava "sua choramingas!"

Ele corou. Não esperava que ela, moça feita, lembrasse dos desvarios infantis. Acreditava que agora, estudada, só fosse comentar da capital, das artes. Da política, não - seu pai iria à loucura se ela desatasse a comentar de como fechava-se o circo na capital.

Ele ficara mais gentil agora crescido, pensava ela em seu íntimo. Os tempos de baia ficaram em algum passado esquecido. As feições de moleque também estavam mais sutis e ela dizia, somente para si, que ele ficara mais bonito do que qualquer rapaz que vira nestes anos. Dissesse isso para qualquer um e ouviria um sermão de horas. Como ela, filha de um dos cafeicultores mais poderosos da região poderia querer qualquer coisa com aquele preto?

Entraram no carro e a conversa cessou. Ele olhava para a estrada esbarrancada, cheia de pedregulhos. Ele estava em pedregulhos. Não imaginava que vê-la novamente o deixaria assim.

Ela usava os pulos do carro como desculpa para seu tamanho desconforto. Admirava-o, quando tinha certeza que não era notada; e se fosse, o que diria? A sociedade não estava pronta para ele, nem para um nós, que se existisse, causaria tamanho estranhamento. O pai a deserdaria sem mais pensar; a mãe faria novenas para que a sua pequena recobrasse o juízo. Ele iria embora com o peso da culpa nas costas.

O carro parou, arrancando-a de sua divagação. A casa, grande e plana, lembrou sua vida. O comando de si era um desejo inatingível. A sociedade era rude, a realidade, imutável. Sua vida era uma linha reta, a qual não deveria sair um milímetro do planejado. Este era o mundo. Esta era ela.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Oi! Tem presentinho para vocês lá no meu blog!

    Boa semana a vcs!

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  3. Não era para ter uma continuação menina Sam?

    Ficou interessante...

    Fiquem com Deus, menina Sam e menino Bertonie.
    Um abraço.

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Caso o hóspede não aproveitou dos serviços desse hotel, a equipe do Hotel de Papelão acha melhor não usufruir dos meios de comunicação aqui presentes. Atenciosamente, Bertonie e Sam.
Resumindo: não leu, dá meia-volta e abraça a pessoa mais próxima. Mas não comenta. Beijo, nos liguem.